9 de março de 2017

9 de Março

Maria acorda as 5h - porque o marido acorda as 6h - na pontinha dos pés pra não atrapalhar. Na cozinha, no maior silêncio, faz o café, frita dois ovos, depois penteia os longos cabelos para não ser vista descabelada, caminha calmamente até o quarto e o chama. Fosse ontem, no que abria os olhos já ouvia “deixa, amor, hoje é seu dia, eu faço o café pra você!”, uma alegria com fim, que só lhe é de direito em 3 datas: dia da mulher, dia das mães e no seu aniversário. Hoje não, hoje escutou o “já vooooooooooou” de sempre. Acordou a filha mais velha que precisa comer antes pra deixar a louça lavada e que assim o fez. Acordou o menino birrento, que já aos gritos anunciava que não ia pra escola. O pai aos gritos dizia que “vai sim senhor, quer ficar burro???” e assim se fazia normal o começo de dia, mais um de tantos na vida da Maria.
Maria tomou a primeira condução as 7h30 e hoje ninguém quis falar com ela. Fosse ontem, no que pisasse no primeiro degrau do ônibus já recebia um caloroso “Bom dia, parabéns pelo seu dia!” do motorista, acompanhado do sorriso falso do trocador que dava uma piscadinha e consentia com a cabeça e em seguida, ao passar a roleta, um moço novo e bonito lhe entregava um botão de rosa vermelha. Hoje não. Hoje ninguém olha na cara. Hoje não merece nem bom dia.
No trabalho, serviço pesado, zeladora do escritório, Maria volta a trabalhar absolutamente sozinha no andar. Fosse ontem, no que empunhasse a vassoura e o balde, já recebia um grande elogio “Maria que é exemplo, mulher guerreira!!” e, depois, uma oferta de ajuda aqui, acolá “ô Dona Maria, esse balde tá pesado pra senhora, deixa que eu carrego”, “Maria pode deixar que hoje eu mesmo organizo minha mesa”. Hoje não. Hoje o balde continua com o mesmo peso mas ninguém oferece ajuda, hoje a responsabilidade pela própria organização não existe. Até um esporro do chefe Maria levou porque não deu tempo de fazer o cafezinho. Ontem não precisou. Hoje deveria ter prestado atenção e feito mais antes de acabar.
O almoço lhe pagaram ontem, hoje Maria requentou o resto que sobrou do jantar que a filha fez em homenagem. Requentou a lembrança de ontem, o dia calmo, respeitoso, cheio de amor, até o filho lavou a louça à noite e até ela pode tomar uma cervejinha com o marido!
Chega em casa cansada, exausta, acabada. Ontem ganhou massagem nos pés. Hoje não. Beliscou duas bolachas que estavam num pacote aberto largado em cima da mesa e pôs-se a varrer a casa, passar as roupas, checar a lição de casa do mais novo... quando percebe, são 9 da noite e o marido ainda não chegou. Liga, não atende. Entristece. Vê a novela, toma um banho e está disposta a deitar... Liga, não atende. Fosse ontem, depois do jantar em família, de beijos de parabéns, o amor os esperava na cama com direito a cerveja e docinhos. Hoje não. Dorme só.
3 da manhã, o marido chega, bêbado. Fosse ontem, estariam agora com os corpos entrelaçados e suspirando longamente, num sono profundo de casal que se ama a noite toda. Hoje não. Hoje a madrugada é do susto. Da porta abrindo aos chutes e dos gritos “Mariaaaaa!!! Sua puta!!!”. O marido a tira da cama aos coices e puxões de cabelo. Grita sem saber o motivo, sente ódio e o deposita no rosto de Maria com tapas e arranhões. Ontem não teve grito, ontem não teve ódio, ontem não teve briga. Maria senta na cama com as mãos cobrindo o rosto, o choro, a angústia e em meio aos soluços sente que consegue reclamar de algo... olha no fundo dos olhos do marido e, querendo também gritar, sussurra:
- Eu queria que todo dia fosse ontem.

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