4 de janeiro de 2016

Falando pra Mim

Quando eu era criança, lembro-me bem, ocupava-me muito pensando sobre a minha idade atual. Aos 9 anos, pensava que seria bailarina do Faustão, bailarina de sucesso ou cantora. Teria filhos, um marido rico e uma casa bem bonita, poderiam ser duas, uma no RJ e uma outra na cidade onde nasci.  Aos 11, saí do ballet e titubeei um pouco entre ser aeromoça ou rapper. Teria filhos, um marido legal que trabalharia no ramo da música, um apartamento em São Paulo. Dos 12 aos 14, me via uma mulher culta, de óculos, formada em jornalismo e eu escreveria crônicas pro jornal da cidade. Teria um filho, não teria marido de jeito nenhum, um apartamento bem pequeno pra não precisar limpar muitas coisas, com playground, no centro da cidade. Aos 15 eu me preocupava bastante, me sentia velha e achava que dalí 10 anos eu seria uma mulher bêbada, com um trabalho que eu não ia gostar nem um pouco mas que me pagaria bem para poder pagar o aluguel. Eu teria uma casa e ela seria suja. Eu não teria um marido, teria sexo casual. Não teria filhos... ou teria? (Se esse pensamento fosse sobre meus 22 ou 23 anos, posso dizer que eu quase acertei... e ainda bem que errei!)
Quando eu era criança, lembro-me bem, ocupava-me muito pensando sobre minha idade atual. Aos 10 anos, percebi que, na verdade, eu era míope e dependeria dos óculos pra sempre, tinha dentes muito grandes, meus seios eram enormes pra minha idade, minha coluna era meio arcada, eu era baixinha e tinha vergonha. Descobri que eu nunca seria bonita o suficiente para ser bailarina de coisa alguma. Desisti. Aos 12, como consequência, compreendi que não atenderia ao pedido de 1,70 de altura na fase adulta para ser aeromoça e também não sabia fazer muitas rimas de improviso, seria um treino e tanto e talvez eu gostasse de fazer algo mais sossegado. Desisti, ser rapper não deve ser sossegado. Então me via uma mulher culta e séria demais, fui percebendo quantas rugas eu imaginava que eu teria com 25 anos... talvez não fosse esse semblante de preocupação que eu quisesse. Desisti. Aos 16 eu bebi, tive sexo casual e não limpei o meu quarto como a mulher que eu esperava ser dali 10 anos, já me via meio que desistindo da vida.
Minha última ambição foi fazer Dança na faculdade. Com 16 anos. Por quê? Não sei. Descobri que existia o curso e fiquei interessada...eu gostava muito de dançar, é minha paixão maior, sempre gostei. Deixei passar. Fiz Artes Visuais e por alguns instantes até sonhei em ser professora. Desisti. Durante um bom tempo fui sendo e aprendendo a ser outras coisas e desistindo também. Fui artesã, fui professora, consegui dançar algumas vezes profissionalmente, fui artista de circo, fui atriz, fui vendedora, fui atendente de lan house, fui professora mais outras várias vezes de coisas diferentes.
Quando me perguntavam o que eu queria fazer da vida, eu me sentia na obrigação de querer algo, então repetia o que pensava que queria aos 16... Dança... e repetia o que minha família queria de mim: graduação, diploma, mestrado, sucesso.
Com 21 mudei de cidade e comecei a tal graduação de Dança. Desisti. Desisti algumas vezes, aliás. Por uns dias, por uns segundos, por uma semana inteira. Nesse meio tempo fui sendo professora de novo, recreadora, palhaça, pesquisadora, balconista, garçonete, freelancer, algo que dê dinheiro (nunca consegui uma bolsa na faculdade)... e triste. Triste??? Como pode alguém “sonhar” com algo desde os 16 anos e ao ponto de realizar tornar-se triste? Pois é, eu também não sei – respondia pra mim mesma. Pensei que eram os problemas do curso, da faculdade, que me deixavam assim. Lutei e bradei por melhoras (que vejo sendo conquistadas até hoje), participei de debates, fui pra cima, militei. Desisti.
E na obrigação social do “querer” ia só querendo morrer pra não dar trabalho. Eu tinha que querer algo, afinal.
Quis pesquisar mais, quis ter dinheiro, quis me empenhar mais, quis um currículo Lattes, quis um diploma com pressa, quis entrar em algum programa de bolsa, quis ter dinheiro, quis xerocar todos os textos, quis concluir pelo menos o estágio, quis ter dinheiro, quis fazer de conta que tava tudo certo, quis ser normal como os meus colegas. Desisti.
Ao longo das minhas desistências profissionais eu também desisti de algumas companhias e de alguns lugares que ilusoriamente me faziam bem. Desisti de beber. Desisti de deixar tudo bagunçado. Desisti de repetir. Desisti de brigar com o despertador e aceitei acordar cedo. Desisti de ficar até de madrugada no computador. Desisti do apartamento. Desisti do confinamento e fui lá fora ver a vida um pouco. Desisti do açúcar, do trigo, do café em excesso. Desisti do dia inteiro deitada. Desisti de trocar o dia pela noite. Desisti de morrer. Desisti de querer.
Numa sequencia de desistências infinitas, desistir de querer foi a minha melhor desistência e então, tornei-me louca. Engraçado, não é? Quando desisti de querer ser algo é que fui me tornar algo. Louca! Dessas loucas mesmo que abraça árvore e mendigo, dá bom dia pro sol e agradece a presença, planta árvores frutíferas na rua, respira fundo e acha importante, prefere dormir no chão do que em cama mole, gosta de dançar atoa, vai no boteco e não bebe, ri de tudo, gargalha, se emociona com a oração na hora da refeição, diz que percebe presença divina, acredita que o mundo tem salvação, não cria relação afetiva com muitos objetos, não gosta muito de dinheiro, acha confortável a simplicidade. Sim, bem esse tipo de louca! Essa que está errada em não querer mais nada e que aceita de bom grado o que vier.

Quando eu era criança, lembro-me bem, ocupava-me muito pensando sobre minha idade atual e eu nunca na vida pensei que seria exatamente como eu sou: louca. E, sinceramente, se eu pudesse voltar no tempo e dizer algo pra mim mesma quando eu era criança, eu diria: Goste você ou não, Amelu, eu pretendo continuar assim.

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