2 de fevereiro de 2015

Be-Ó na Constantino

Segunda-feira, hora do almoço, correria, banco, fila, dinheiro, desconto, aluguel, calor, rua lotada de gente tão fodida e apressada quanto eu. Respiro. A cidade. Essa é a cidade.
Escuto passos apertados, logo em frente vejo gente parando, aglomerando, giroflex, confusão. O que será que aconteceu? “Parece que foi a mão armada”, “parece que era arma de mentira”, parece a polícia. Aparecia muita gente, muita coisa.
Bairro nobre da cidade, avenida principal, as madames escondem o semblante indignado atrás das unhas bem feitas, dos cabelos escovados, dos imensos óculos de sol, agarradas com os dois braços nas enormes bolsas que carregam o poder em forma de papéis, cartões e contra-cheques. Penso maldade. Não dá tempo de conferir, a fila é grande, o intervalo é curto.
Minha cabeça em parafuso, os olhos confusos, meio ceguetas já – tem tempo que não vou ao oculista, é caro, o óculos de grau atrasado – em câmera lenta, focam com dificuldade dois moleques do outro lado da rua. O menorzinho tem os olhos azuis cheios de um mar em dia de tempestade. As mãos sendo forçadas para trás por um senhor fardado que tinha idade pra ser seu avô. Caminho de vagar, vejo o mar naqueles olhinhos e lembro que hoje é dia de Iemanjá. Penso na mãe do menino.
Algema os pulsos do seu neto, senhor. Da forma cruel como te ensinaram a fazer. Da forma como senhor gosta, aprendeu a gostar, sem pudor. Não se importe se é criança, se chora, se grita, se reza, se se arrepende, se não fez nada. Não interessa. As madames e os homens de terno querem justiça, querem ver a truculência justa com que é tratada a desigualdade, o não-ter, a necessidade, a diferença. Apontam e gritam, escrotos, sacolejam as joias, aplaudem a polícia e eu aperto o passo, o patrão e o aluguel não querem saber das coisas que eu vejo por aí.
Caminho de volta na minha rota, é só uma passadinha rápida ali, não vai dar tempo, não vai dar tempo. Faço o que tenho que fazer, eu quero ir lá olhar.
Passo agora pelo mesmo lado da rua. Tem mais carro parado, mais luz, mais polícia, tem mais madame, mais lojista, tem mais muvuca e ao mesmíssimo tempo não tem ninguém. “Parece que ele gritava”, “parece que queriam fugir”. O mundo dá aquela parada de quando a gente vê alguma coisa muito terrível. Os dois de joelhos na calçada, algemados, com a testa colada numa placa que faz propaganda da ótima mobilidade urbana da cidade, os protetores da lei apontam quatro armas para aquelas duas pequeninas cabeças. Vão executar? Agora? Assim, de dia, em público?? Isso sim seria o ápice do orgasmo daquelas madames nos consultórios de psicanalistas ao entardecer, nos salões chiques da avenida. Penso de novo na mãe dos meninos... acho que ando muito maternal. Não consigo perguntar. Preciso ir.
Subo numa transversal, parte mais residencial, caminho apressada, quase corro, suada, pálida, gasta e do outro lado das grades de um condomínio luxuoso posso ver dois moleques sentados, provavelmente da mesma idade daqueles de lá. Um faz o beatbox e o outro manda uma rima. Vejo os olhos com a cor do mar calmo das férias de quem tem dinheiro.  Eu não escuto mas, pela expressão, o rap segue nervoso. Nervosamente sem nenhuma influência da rua, da correria, da quebrada, da desigualdade. Bonito no sofrimento online, a confortável reclamação pré-adolescente. Eu estou mesmo nessa merda de mundo. Meia hora de atraso, meu chefe vai me matar.


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