Segunda-feira,
hora do almoço, correria, banco, fila, dinheiro, desconto, aluguel, calor, rua
lotada de gente tão fodida e apressada quanto eu. Respiro. A cidade. Essa é a
cidade.
Escuto
passos apertados, logo em frente vejo gente parando, aglomerando, giroflex,
confusão. O que será que aconteceu? “Parece que foi a mão armada”, “parece que
era arma de mentira”, parece a polícia. Aparecia muita gente, muita coisa.
Bairro
nobre da cidade, avenida principal, as madames escondem o semblante indignado
atrás das unhas bem feitas, dos cabelos escovados, dos imensos óculos de sol,
agarradas com os dois braços nas enormes bolsas que carregam o poder em forma
de papéis, cartões e contra-cheques. Penso maldade. Não dá tempo de conferir, a
fila é grande, o intervalo é curto.
Minha
cabeça em parafuso, os olhos confusos, meio ceguetas já – tem tempo que não vou
ao oculista, é caro, o óculos de grau atrasado – em câmera lenta, focam com
dificuldade dois moleques do outro lado da rua. O menorzinho tem os olhos azuis
cheios de um mar em dia de tempestade. As mãos sendo forçadas para trás por um
senhor fardado que tinha idade pra ser seu avô. Caminho de vagar, vejo o mar
naqueles olhinhos e lembro que hoje é dia de Iemanjá. Penso na mãe do menino.
Algema
os pulsos do seu neto, senhor. Da forma cruel como te ensinaram a fazer. Da forma
como senhor gosta, aprendeu a gostar, sem pudor. Não se importe se é criança,
se chora, se grita, se reza, se se arrepende, se não fez nada. Não interessa. As
madames e os homens de terno querem justiça, querem ver a truculência justa com
que é tratada a desigualdade, o não-ter, a necessidade, a diferença. Apontam e
gritam, escrotos, sacolejam as joias, aplaudem a polícia e eu aperto o passo, o
patrão e o aluguel não querem saber das coisas que eu vejo por aí.
Caminho
de volta na minha rota, é só uma passadinha rápida ali, não vai dar tempo, não
vai dar tempo. Faço o que tenho que fazer, eu quero ir lá olhar.
Passo
agora pelo mesmo lado da rua. Tem mais carro parado, mais luz, mais polícia,
tem mais madame, mais lojista, tem mais muvuca e ao mesmíssimo tempo não tem
ninguém. “Parece que ele gritava”, “parece que queriam fugir”. O mundo dá
aquela parada de quando a gente vê alguma coisa muito terrível. Os dois de
joelhos na calçada, algemados, com a testa colada numa placa que faz propaganda
da ótima mobilidade urbana da cidade, os protetores da lei apontam quatro armas
para aquelas duas pequeninas cabeças. Vão executar? Agora? Assim, de dia, em
público?? Isso sim seria o ápice do orgasmo daquelas madames nos consultórios
de psicanalistas ao entardecer, nos salões chiques da avenida. Penso de novo na
mãe dos meninos... acho que ando muito maternal. Não consigo perguntar. Preciso
ir.
Subo
numa transversal, parte mais residencial, caminho apressada, quase corro,
suada, pálida, gasta e do outro lado das grades de um condomínio luxuoso posso
ver dois moleques sentados, provavelmente da mesma idade daqueles de lá. Um faz
o beatbox e o outro manda uma rima. Vejo os olhos com a cor do mar calmo das
férias de quem tem dinheiro. Eu não
escuto mas, pela expressão, o rap segue nervoso. Nervosamente sem nenhuma influência
da rua, da correria, da quebrada, da desigualdade. Bonito no sofrimento online,
a confortável reclamação pré-adolescente. Eu estou mesmo nessa merda de mundo. Meia
hora de atraso, meu chefe vai me matar.
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