São 9 da manhã, o céu está nublado, o que não é novidade na
cidade onde moro (ia dizer “onde vivo”... mas às vezes não me sinto muito viva
nesta cidade). Visto uma blusa amarela afim de me impor sobre o mau tempo, eu
não quero ceder nunca ao cinza triste – quando eu era adolescente, minha mãe me
acordava com um grito de guerra “hei de
vencer!”. É claro que sim. Hoje vou rever boa parte dos colegas de turma. 4
meses longe. 3 de férias e mais um mês cansativo em greve. Me sinto um pouco aliviada
pelo retorno da rotina, gera uma expectativa, um calorzinho bom.
Chego na sala de aula. Meu mundo amarelo quase cai.
Respiração celular e um comando da orientadora para interagir com o ambiente,
com as pessoas e a minha disposição é grande mas nada recíproca. Todos são cinza como o dia. Todos só querem
recolher. Eu penso, maldosamente, que não deviam ter saído de casa.
Na roda de conversa, prática comum ao fim da aula, só
reclamações, situação de crise de identidade, de profissão, de escolha, todo
mundo com problema com o curso logo no primeiro dia de aula e eu me questiono
se eu também estou assim. Não estava. Mas a sementinha problemática foi
plantada. Eu não vou reclamar da minha vida, da minha sorte, do dia, dos outros,
do meu emprego, eu gosto de tudo isso. E, por sempre ser mais prática,
diferente da maioria, não gosto muito de reclamar, gosto mesmo é de transmutar.
Ah.. a sementinha da problemática. Ela sempre faz a gente
questionar e querer saber por que e como acontecem os empecilhos que aparecem
no caminho. Entrei na graduação em Dança em 2012 e não sabia direito o que
queria ali, mas estava realizando um sonho antigo. Foi difícil sair de casa, me
afastar da família, de um namorado que eu amava muito, das minhas raízes, dos
lugares confortáveis, mudar pra uma cidade grande sem conhecer quase ninguém.
Eu cheguei aqui e desbravei os caminhos que muitos já
trilharam. Pra mim, um caminho cheio de novidades e tudo o que olho nesse
caminho me parece lindo, porque me encanta muito toda brisa que cheira o que
não conheço. Fui tentar me construir melhor na dança contemporânea, que permeava
a zona de conforto e o curso tem força nisso, os professores unanimemente
gostam, seria um bom campo pra continuar meu esforço. Mesmo que muito
libertária, não me sentia tão contemplada de corpo e alma. Eu queria mais do
que a técnica, mais do que pensar o corpo, os órgãos, o silêncio e a pausa.
Precisei, mais uma vez, transmutar pra não reclamar. Fui conhecendo gente, fui
vendo as coisas e a rua me levava pros caminhos das tradições. Toda novidade a
que me abria tinha relação com o ancestral, com raízes fortes, com origens, com
as cachoeiras da minha cidade, com a saudade, com uma linhagem familiar perdida
que até agora não consegui conhecer direito. E a sementinha brota... quem sou
eu, nisso tudo, afinal?
As escolhas na dança
que venho fazendo desde o fim de 2012, vão me aprofundando num caminho que não
dá mais pra saber em que direção estou indo. Quanto mais sigo em frente, mais sinto
necessidade de entender o que ficou pra trás e eu nem vi. A relação
passado-presente-futuro na construção de uma dança que é “minha” é cada vez
mais importante na tentativa de me fazer sentido no mundo. Me observo no
passado pensando em técnica, extensão, preocupada em agradar por ter um
alongamento, tentando com sofrimento fazer um salto perfeito, na estética de
bailarina que nunca tive, sendo cobrada, algumas vezes depreciada mesmo sem
sofrer com isso, achava que podia sempre me esforçar mais e mais... Aquela
velha mentira sobre perseverança “no pain – no gain”, eu realmente acreditava
nessa bobagem. Me observo agora sendo elogiada por entrar numa roda de Coco com
alegria, por inovar, pela entrega e dedicação que transpareço quando toco
Maracatu, quando estou no Jongo, no Samba de Roda sem peso, sem dor, só
respeito, felicidade e curiosidade. Por que isso tudo? Eu penso. Por que
ninguém nunca me elogiou quando eu realmente me esforçava ensaiando 4, 5 horas
a fio uma coreografia que arregaçou meus joelhos? Qual a relação disso tudo com
quem eu sou? Será que essas danças tradicionais, ancestrais, primitivas,
estavam arquivadas na minha genética? Eu estou aprendendo algo novo ou
resgatando algo que sempre esteve em mim? Volto a pensar no primeiro dia de
aula... Isso pra mim é Respiração Celular de fato! É isso! As minhas células
respiram assim, respiram a pisada do Toré, respiram a umbigada jongueira,
respiram o trupé. As minhas células respiram em compassos de 6 por 8, elas tem
um remelexo que não encontro espaço pra mostrar na faculdade, só encontro na
rua! E, esperando talvez encontrar uma resposta pro que não se responde, pode
ser que eu tenha mesmo errado em sempre escolher o institucional para progredir
na arte quando minha arte é feita de gente, chão batido, sol ou lua.
Mas persisto. Não é possível que não exista espaço dentro da
universidade pras células que respiram amarelas a alegria de bater mãos e pés.
E também, já que falo tanto de raiz, tenho nas minhas veias o brado de minha
mãe pela manhã “HEI DE VENCER!”.
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